Justiça quase para todos iniciativas tentam sanar lacunas no judiciário

Justiça (quase) para todos: iniciativas tentam sanar lacunas no judiciário

Apesar de ser um direito garantido pela Constituição, diversos grupos sociais não conseguem acessar o judiciário brasileiro. Para mudar essa realidade, advogados em várias partes do país têm criado iniciativas para oferecer atendimento jurídico gratuito para os grupos mais vulneráveis

A Constituição brasileira garante em seu artigo 5º a possibilidade de acesso à justiça a todos. Contudo, obstáculos sociais e econômicos, promovidos pela desigualdade, colocam uma trava na porta do Judiciário para uma parcela da população.

“Temos um sistema de justiça seletivo, racista, classicista e moroso. O acesso da população preta e pobre é só pela justiça criminal. A justiça é muito malvista por essas populações que se sentem receosas em buscá-la, mesmo quando acreditam que a sua defesa não pode ser refutada. Acham que a justiça existe para penalizá-los”, argumenta Edna Jatobá, cientista social, especialista em políticas e gestão em segurança pública, e coordenadora executiva do Gajop (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares) em Pernambuco.

Atuando no Gajob desde 2004, Edna reforça que as pessoas buscam o serviço, que atende famílias de jovens presos e do sistema socioeducativo desde 1981, por não saberem onde pedir ajuda.

“As pessoas nos procuram porque não sabem como começar. Muitos pedem nosso acompanhamento por não entenderem a linguagem do judiciário. Trazem os documentos aqui e perguntam: o que isso quer dizer? Como faço a defesa? No mundo ideal, nosso serviço não precisaria existir, mas, enquanto o Estado continuar violando os direitos destas pessoas, precisamos atuar”, pontua.

O Gajob não é a única iniciativa observando as lacunas no judiciário. Em diversos pontos do país, surgem projetos com uma aplicação do direito pro bono (quando o atendimento é gratuito) para atender grupos vulneráveis da sociedade: pessoas que não teriam como pagar por uma defesa ou sofrem violações dentro do sistema de justiça.

Um julgamento por cor

Este ano, uma juíza do Paraná utilizou como argumento a cor da pele para a condenação de um réu. O acusado era negro, e para a Juíza Inês Marchalek Zarpelon “seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”.

O homem foi condenado a 14 anos de prisão e a juíza inocentada da acusação de racismo pelo Órgão Especial da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Paraná.

Também este ano, outro caso ganhou repercussão. Desta vez, no Rio de Janeiro. O violoncelista Luiz Carlos Justino, de 23 anos, foi preso em setembro de 2020 por um roubo que ocorreu em 2017.

Arte: Mariana Lima (Observatório do 3º Setor) com fotografia da Agência Brasil.

Na data em que o crime foi realizado, Luiz estava se apresentando em uma padaria com dois primos, a 7 km de distância do local do roubo. A vítima havia sido abordada por três pessoas, mas reconheceu apenas Luiz por fotografias.

Luiz tinha álibi, testemunhas e provas de que não estava envolvido. Mas ainda assim foi preso. Três dias depois, o juiz André Luiz Nicolitt revogou a prisão preventiva do rapaz, apontando a inconsistência para a foto de um jovem negro, violoncelista, sem nenhum antecedente criminal estar em um álbum da polícia.

“Uma decisão assim não teria ocorrido se não fosse um juiz negro. Com o nosso trabalho queremos que os juízes cumpram a lei, mas não por suas subjetividades”, defende Beatriz Cardozo, 25, residente jurídica na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e advogada do Instituto Nacional de Defesa da População Negra (IDPN).

O Instituto foi lançado em agosto deste ano por dois advogados e um jornalista, com o objetivo de promover a criação de uma rede de assistência jurídica gratuita para a população negra e ampliar a presença de advogados negros em grandes escritórios no país.

A iniciativa ainda não está atendendo casos, mas em outubro de 2020 abriu um edital para selecionar os advogados voluntários, que receberão auxílio e uma formação complementar.

“O racismo no judiciário é a principal razão para a criação do IDPN. É importante pensar o porquê de se precisar de um instituto atuando desta forma. As prisões existem por causa do racismo. São os corpos negros que estão encarcerados. Eles formam 80% das pessoas atendidas pela defensoria pública. É um defensor a cada mil assistidos. Como promover uma defesa de qualidade assim?”, questiona Juliana Sanches Ramos, advogada criminalista e membra do Instituto de Defesa da População Negra.

Juliana já realizava a advocacia pro bono antes de entrar para o Instituto. A participação no projeto foi a materialização de um sonho ao unir sua militância com a advocacia.

Pode ter o registro de ponto, gravação e testemunhas. Ainda assim, não faz diferença. Mas quando nós entramos no meio as coisas mudam porque vira uma briga nossa. A gente vai atrás, fala com o promotor, movimenta tudo. O judiciário se coloca de forma distante das pessoas, e a gente ali cria outra relação com quem está sendo julgado”, conta Juliana.

O Instituto surge em meio ao movimento ‘Black Lives Matter’ (Vidas Negras Importam), mas, para Beatriz, a pauta sempre foi urgente para a população negra no Brasil.

“É um ano complicado, mas para a gente não é novidade. Isso está acontecendo desde 1500. É a necropolítica em funcionamento. Dá um susto de primeiro momento, parecendo algo novo, mas essas questões e violações dos corpos pretos ocorrem desde sempre. A violência policial é denunciada pelas mães do Rio há anos, mas a branquitude só ouve quando vem dos EUA”, pontua.

Ambas reforçam que a pandemia apenas mostrou a importância de promover essa luta. “Ouvi de um juiz que só quem estivesse no espaço estaria seguro da COVID-19. Que todo mundo aqui no planeta corre perigo. Tudo para não dar uma decisão favorável à soltura de um preso”, conta Beatriz.

Juliana ouviu decisões semelhantes ao acompanhar casos de pessoas que estavam dentro dos critérios estipulados pela recomendação nº 62, do CJN, para serem soltas durante a pandemia. “Os juízes defendiam que os presos estariam mais seguros nas unidades prisionais. É surreal falar algo assim quando se tem 40 presos em uma cela para 5, sem ventilação, com baratas e ratos, sem um processo de higiene adequado”, argumenta.

O que mais ela precisa provar?

Em 2019, uma agressão física contra a mulher era registrada a cada 2 minutos no Brasil. O último ano registrou 266.310 ocorrências de lesão corporal dolosa em decorrência da violência doméstica, de acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Já o Monitor da Violência, realizado pelo G1, com dados das Secretarias de Segurança Pública dos estados, revelou que o número de mulheres assassinadas por crime de gênero aumentou 7,3% de 2018 para 2019.

Buscando dar uma resposta a índices como estes, surgiu a organização Tamo Juntas, em 2016, na cidade de Salvador (BA). Com trabalho voluntário, a ONG oferece assessoria multidisciplinar em todas as regiões do país, com suporte jurídico, psicológico, pedagógico, social e médico de forma gratuita para mulheres em situação de vulnerabilidade.

“É fundamental ter uma atuação política que acolha essas mulheres sem vitimizar, respeitando seus processos e autonomia. Promovemos uma rede para transformar a realidade nas duas pontas: a mulher que sofre a violência e o sistema de justiça”, revela Leticia Ferreira, advogada feminista e integrante da diretoria da Associação Tamo Juntas.

Arte: Mariana Lima (Observatório do 3º Setor) com fotografia do Unsplash.

Uma das frentes de atuação da entidade é combater a violência institucional, quando o mau acolhimento e os ataques nas delegacias e no judiciário acabam fazendo com que a mulher desista do processo.

“Trabalhamos com mulheres em situação de vulnerabilidade, com dificuldades para acessar diversas coisas. Fazemos uma escuta para encorajá-las, mas nunca as obrigamos a tomar uma decisão. Nossa atuação é guiada para que se sintam seguras. Não podemos impor. É ela que vai viver as consequências dessa escolha. Na delegacia, é comum que elas escutem: ‘o que você fez?’ É uma pergunta que destrói a confiança dela na justiça”, aponta Letícia.

A advogada ressalta que o Judiciário ainda não aplica em seu próprio comportamento o respeito à mulher vítima de violência.

“O Estado dá a abertura para que a violência ocorra. A forma como a vítima é tratada no processo, quase como um objeto, exemplifica isso. Não é o que fazemos. Nós as colocamos como um sujeito de direito. Isso colabora para que elas desmontem essa lógica que naturaliza a violência, que valida o agressor”.

Ferreira reforça que o funcionamento do poder judiciário ainda impõe uma opressão de gênero, dificultando que as mulheres consigam encontrar suporte na justiça.

“Elas ainda precisam rodar muito para conseguir o que precisam. Dependendo do caso, ela precisa passar pela vara da família, pelo Conselho Tutelar e no Fórum. Existe lei, pressão e demanda, mas tem uma resistência histórica”.

Para Letícia, o que mostra a importância de aliar a militância ao exercício da advocacia são os casos que ela acompanha.

“Temos uma assistida de Salvador que está há quatro anos tentando se divorciar do seu agressor. Ela tem mais de 19 boletins de ocorrência. Tem todas as provas. A agressão é clara e evidente, mas o agressor não é punido. Constrange e ameaça ela e as voluntárias e profissionais da Tamo Juntas. A luta agora parece ser contra o próprio Estado para que ela possa ser protegida. O que mais ela precisa provar?”.

As populações indígenas na Justiça
Arte: Mariana Lima (Observatório do 3º Setor) com fotografia da Agência Brasil

O sistema de justiça barra diversos grupos, mesmo com a interferência das Defensorias. Não seria diferente para as populações indígenas espalhadas pelo Brasil. Em Mato Grosso do Sul, surgiu em 2012 o Núcleo de Defesa e Assessoria Jurídica Popular (NAJUP/MS), que atua para reverter este quadro.

A iniciativa, que oferece atendimento jurídico gratuito para as populações indígenas do estado, foi criada pelo advogado indígena Luiz Henrique Eloy Amado, que nasceu na aldeia da etnia Terrena em Aquidauana (MS), em parceria com o advogado do Movimento Sem Terra (MST) Anderson de Souza Santos.

“Em relação às populações indígenas, o acesso à justiça é cercado de preconceitos e ações discriminatórias. Até nas Defensorias Públicas, que são espaços pensados para grupos vulneráveis, temos ocorrências neste sentido”, revela Anderson.

Exemplos deste padrão de tratamento já foram acompanhados pelo Núcleo, como o caso de uma liderança indígena na região de Paranhos, perto da fronteira entre Mato Grosso do Sul e Paraguai.

“Uma liderança levou dois tiros durante um conflito e precisou andar 5 km para poder ser atendida, porque a SESAI – Secretaria de Saúde Indígena – se recusou a encaminhar uma ambulância para o território. E depois, essa liderança foi processada junto com o filho por posse ilegal de arma. Quando a Defensoria estava com o processo, não houve nenhum cuidado no acompanhamento. Não citava o ataque e as ameaças ao território. Se não fosse a nossa interferência, eles estariam presos hoje”, conta.

Núcleo atende processos judiciais sobre posse, propriedade e uso de territórios indígenas – Guarani, Kaiowá, Kinikinau e Terena – e na defesa de lideranças indígenas que são criminalizadas por conta da luta pela terra. Inicialmente, também agiam na defesa de indígenas no sistema prisional.

As demandas chegam por telefone, uma vez que todas as aldeias do estado têm o número do Núcleo. Quando o acesso direto não é possível, as aldeias encaminham as demandas para conselheiros que representam os povos para que então levem as solicitações.

O cenário atual é desfavorável para todas as demandas das populações indígenas. A Funai – Fundação Nacional do Índio -, por exemplo, vem adotando uma política de não ceder advogados voluntários para atender as comunidades”, revela o advogado.

O coordenador do Núcleo reforça a necessidade de continuar com as ações em prol das defesas das populações indígenas. Em agosto, o advogado Luiz Eloy defendeu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar o governo a cumprir a Constituição e garantir o mínimo de proteção contra a Covid-19 entre as populações indígenas.

“Não é algo apenas do Executivo. No estado mesmo, foi a Sociedade Civil que se mobilizou para atender as demandas das aldeias, enquanto os órgãos governamentais nada fizeram. A SESAI, por exemplo, não protege as populações e dificulta o acesso de quem quer ajudar. Conseguimos trazer a Médicos Sem Fronteiras, mas não liberam a entrada nas aldeias”, revela Anderson.

O papel do ambiente acadêmico

“Estamos em um país com um número considerável de pessoas que ainda não têm acesso à justiça. Apesar do trabalho das defensorias públicas, nem sempre as pessoas vão procurar, seja por não ter informação, vergonha ou por não se sentirem acolhidas”, explica Gustavo Auler, coordenador do Núcleo de Práticas Jurídicas Advogado Luiz Gonzaga Pinto da Gama das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), no Rio de Janeiro.

O NPJ Luiz Gama existe desde 2011, funcionando como estágio para os estudantes da instituição. Os Núcleos são comuns nos cursos de Direito, mas nem todos trabalham com casos reais, já que não é uma obrigação.

Arte: Mariana Lima (Observatório do 3º Setor) com fotografia de Guilherme Gandolfi | via Fotos Públicas

“A nossa preocupação era que realmente tivéssemos processos de verdade, atendendo um público que precisasse de um serviço jurídico de qualidade”, pontua.

Os estudantes que participam do NPJ atuam sob os cuidados de professores orientadores nas áreas Cível, Penal, Trabalhista e da Família.

No NPJ Luiz Gama, os atendimentos são direcionados para grupos vulneráveis das comunidades ao redor do bairro do Botafogo e na região central da cidade.

Com quase uma década de atuação, as demandas pelo serviço já são maiores do que o NPJ Luiz Gama poderia dar conta.

“Auxiliamos aqueles que, infelizmente, estavam esquecidos pelo Estado e por boa parte da população. São pessoas em situação de rua, de baixa renda, prostitutas, travestis ou trans que nos procuraram para ter seus direitos garantidos”.

Desde 2016, o NPJ Luiz Gama viu aumentar a demanda por atendimentos de casos para a requalificação civil (mudança de prenome e gênero) de pessoas transgênero.

“Naquele ano, ainda era preciso recorrer ao judiciário. Era um processo lento, moroso, caro e que uma grande parcela da população não tinha conhecimento ou recursos para fazê-lo, perpetuando uma lógica de violência e desrespeito a sua personalidade”, argumenta Giowana Cambrone Araújo, uma das professoras orientadoras.

O cenário melhorou em 2018, quando saiu a decisão do STF estabelecendo que as pessoas transgênero poderiam realizar a requalificação civil diretamente no cartório.

Atuando nesta área desde que entrou no NPJ em 2015, Giowana conseguiu unir a militância com o exercício da advocacia. O primeiro caso em que atou foi marcante.

“Era uma mulher trans que havia feito a cirurgia de redesignação sexual há 35 anos e ainda não tinha conseguido se requalificar civilmente, constando nos seus documentos civis prenome e gênero masculino. Foi lindo ver a felicidade dela quando conseguimos”, relembra.

Por: Mariana Lima

Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/justica-quase-para-todos-iniciativas-tentam-sanar-lacunas-no-judiciario/

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